Thursday, October 05, 2006

With our own two hands...


i can change the world
with my own two hands
make a better place
with my own two hands
make a kinder place
with my own two hands
with my own
with my own two hands
i can make peace on earth
with my own two hands
i can clean up the earth
with my own two hands
i can reach out to you
with my own two hands
with my own
with my own two hands
i'm gonna make it a brighter place
i'm gonna make it a safer place
i'm gonna help the human race
with my own
with my own two hands
i can hold you
with my own two hands
i can comfort you
with my own two hands
but you got to use
use your own two hands
use your own
use your own two hands
with our own
with our own two hands
with my own
with my own two hands
Ben Harper, "With my own two hands"
(um GRITO para todos: nós podemos mudar o mundo, torná-lo um lugar melhor, "with our own two hands")

Tuesday, October 03, 2006

"O meu coração batia a mil..."

A minha primeira manhã/tarde, depois de uma troca pedida por um colega, à qual acedi porque temos de ser "uns para os outros".
A manhã tinha-se passado bem, com muito trabalho mas sem grande stress... e chegava a tarde, apenas com mais uma colega. Tudo nos aconteceu. Tivemos de puncionar imensos doentes tanto para colocação de CVP como para colheita de hemoculturas... eles, alheios ao nosso cansaço e ansiedade, lá esticavam o braço, gracejavam palavras entrecortadas pelo receio de sentir uma agulha a penetrar-lhes a pele e enrugavam a face ao sentir a dor que lhes provocávamos, mas que era necessária. O sr. do hospital de dia, a mão com um seroma enorme... "está tudo bem?" "dói-me um pouco a mão". Parar a transfusão de sangue de imediato, e recomeçar noutro acesso. Tentar melhorar aquele inchaço e hematoma... o sr. que chora apenas porque "fui muito boa para ele, fiz-lhe muito bem". Emudeço. Apetece-me abraçá-lo e dar-lhe um beijo. Dou-lhe apenas a mão e digo "não precisa de agradecer, então? Estamos aqui para isto".
Entretanto, as tensões estavam altas, os anti-hipertensores saltavam das gavetas da medicação para a boca dos doentes... a febre espreitava ao longe e bem perto, e também os anti-piréticos faziam a mesma viagem.
Então, umas veias resistentes às nossas investidas, teimavam em fugir da agulha que as procurava... e a decisão "é necessário colocar um CVC". No meio do caos, parecia então o pesadelo. E as horas a passarem... Eu, na sala, com o doente, a médica, o material... sem saber o que fazer. A médica que compreende e que me diz, passo-a-passo, o que fazer. O nervoso miudinho falava por vezes mais alto e algum material tive de ir buscar em duplicado, porque contaminei, sem querer. As palavras "não se preocupe, temos tempo, ninguém nasce ensinado. O que importa é que as coisas fiquem bem feitas". A tranquilidade que necessitava...
Acabou. Então sai cá fora, e de imediato ouço a minha colega comunicar à médica, "o sr. da cama x faleceu". Ele? Tão indefeso, magro, carcomido pela vida e por ele mesmo. Acompanhado e tão sozinho. O rosto indiferente, estático, gelado. O corpo, leve como uma pena, inerte. Cuidamos dele e fechamo-lo naquele saco tão impessoal... como haveria de ser pessoal se é apenas e só um saco? A imagem... a etiqueta no dedo do pé, como nos filmes, naquele momento então... realidade. O sr. auxiliar do hospital (não do serviço) que vem buscar o corpo, mas que mete apenas um saco na maca, como se não soubesse, não se lembrasse que estava também ali uma pessoa. O saco, ele levou o saco. E nós. Nós comunicamos a morte de um familiar, de um filho, de um primo, de um neto... de uma pessoa.
Deitamos os doentes, aconchegando-os o mais possível, num ambiente que não é o deles.
E quando conseguimos por fim iniciar o ritual do "escrever registos" lembrei que tinha posto o termómetro ao senhor que tinha entrado (um dos dois que deram entrada connosco nessa tarde). Fui, e no quarto, a sei lado, estava o sr. A., a quem antes tinha sido colocado o CVC. Apresentava agitação psicomotora, com discurso incoerente (como viria a referir nos registos escritos de acordo com o meu "eu" enfermeira). O meu "eu" pessoa, diria que o senhor estava aflito... dizia que não queria a máscara (que lhe dava o oxigénio essencial para ele), que queria ir a um qualquer lugar que não especificava, que queria sair... o olhar, vagueava entre o olhar para mim e o olhar para outro local, que não aquele onde se encontrava. Senti que algo ali não estava bem. Não era uma agitação normal de um doente confuso, até porque momentos antes o senhor estava bem, perfeitamente orientado, estava "aqui", e não noutro sítio qualquer. Chamei a minha colega "B., é melhor vires. O sr. da cama x está agitado, não estou a perceber muito bem." Quando as duas tentámos falar melhor com ele, a minha colega disse "é melhor chamares a médica de urgência". Entretanto, os colegas que nos iam render à noite já tinham também chegado. Sai do quarto, procurando o número para o qual iria ligar. A minha colega saiu do quarto, pálida, e gritou "rápido, ele está a parar, a sério". Gelei. Gritei para o G., "liga tu, que eu ainda não sei bem onde está o número" e corri para o carro de reanimação. Com a ajuda de I., lá o levamos para o quarto. Coloquei a placa dura por baixo do senhor. O meu coração batia a mil, o dele estava a desistir de bater. Começaram as compressões, e eu iniciei a ventilação com Ambu. As médicas chegaram e entre medicação, manobras de reanimação, cortinas corridas e entubação OT, olhei o cenário á minha volta, pensei que não estávamos ali a fazer nada. Que nada daquilo fazia sentido. Mas ele não tinha indicação para não reanimar. E prosseguiu-se. Assim tinha de ser.
Tinha 95 anos, nunca tinha ido ao médico, nunca tinha estado doente.
Morreu.
O coração dele aguentou toda uma vida, mas não suportou um momento.
O meu coração batia a mil...